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Comércio exterior
A ascensão do mel: como o Piauí se tornou o maior exportador nacional do produto
Organização da cadeia estimulou a renda da agricultura familiar e a da agroindústria
Nícolas Barbosa e Robert Pedrosa - redacao@pinegocios.com.br
7 mil toneladas, 26 milhões de dólares. Estes são os números oficiais aproximados de exportação de mel do Piauí no ano de 2022. Eles colocam o estado como líder entre todas as unidades da federação na venda do produto para o exterior. Esse resultado, no entanto, não é apenas mais um índice econômico. Ele significa geração de renda para milhares de agricultores familiares de algumas das regiões piauienses mais pobres, um modelo de desenvolvimento com participação da agroindústria e que a organização de uma cadeia integrada que foi construída ao longo de quase 40 anos teve efeitos positivos.
Os dados do IBGE sobre o valor da produção piauiense de mel nos últimos 18 anos são capazes de comprovar parte dessa história. Em 1994, o estado produziu o equivalente a R$ 953 mil (R$ 180 mil dólares). Até o final da década de 1990 houve um crescimento anual contínuo, mas muito baixo. No início dos anos 2000, o valor produzido dobra, chegando a R$ 13,5 milhões em 2003 e depois se mantém até haver um novo grande impulso na década de 2010 e começo da de 2020, quando atinge R$ 99,4 milhões em 2021, o equivalente a R$ 19,8 milhões de dólares. Portanto, entre 1994 e 2021, a produção do mel cresceu mais de 100 vezes.
Se esses números conseguem descrever parte da ascensão da produção de mel piauiense, a história completa só pode ser contada por meio da história de muitas pessoas. Foi e continua sendo necessário o envolvimento de muitos indivíduos, empresas e instituições para que o produto piauiense continue gerando resultados.
Início da apicultura técnica no Piauí
O mel é um produto natural que sempre foi utilizado por todas as populações humanas que estiveram pelo Piauí. No entanto, a apicultura técnica, com vista à produção para o mercado, remonta à vinda da família Wenzel ao estado. Em 1976, dois representantes da família migraram do interior de São Paulo para a região de Picos. Apesar de não serem grandes produtores, a flora repleta de plantas melíferas do semiárido piauiense demonstrava o potencial piauiense para a produção de mel.
Mas a atuação que se iniciou no final da década de 1970 teve um impulso maior apenas na década de 1990. Em 1991, a família Wenzel criou o seu braço empresarial para envasar e distribuir o mel no mercado nacional e em 1997 se tornou uma indústria para beneficiar ainda mais o produto.
Ainda na década de 1990, os dois outros polos de exportação de mel do Piauí, Oeiras e Simplício Mendes começaram a se estruturar. O último, atualmente, é o terceiro maior município exportador piauiense. A história da apicultura nesta região remonta à chegada do bispo alemão Dom Edilberto Dinkelborg à Diocese de Floriano. Entusiasta da atividade por ter realizado a mesma em seu tempo de seminarista, o líder religioso inicia o Projeto Abelhas com o lema “Criar abelhas para melhorar a vida”.
Captando recursos na Europa, o bispo doou colmeias, indumentárias e apetrechos para famílias carentes das cidades de Isaias Coelho, São Francisco de Assis e Simplício Mendes. No começo, a Diocese revendia a sua produção para conventos do Nordeste por meio de um entreposto criado em Floriano. Depois da saída de Dom Edilberto, o projeto foi mantido pelo Padre Geraldo na paróquia da cidade de Simplício Mendes.
O técnico em agropecuária José de Anchieta Moura descreve o rápido crescimento do Projeto Abelhas. “Em 1990 foram financiados três projetos para testar a vocação da região. Como deu certo, em 1992 ele já foi estendido para oito municípios e em 1994 foi fundada a associação de produtores de mel com 800 associados”, conta o técnico que trabalha para a Fraternidade São Francisco de Assis, que ainda hoje, contribui com a inserção de agricultores familiares na apicultura.
A história do maior polo exportador do Piauí, Oeiras, também remonta à década de 1990, quando Samuel Lima Araújo decide que a apicultura é a melhor atividade para desenvolver na região. O empreendedor sempre atuou produzindo mel, mas também vendendo os itens e insumos necessários para os demais produtores realizarem a produção. No começo da década de 2000 fez a sua primeira exportação e atingiu um alto grau de especialização e conhecimento do setor. Atualmente, ele administra o Grupo Sama, que possui empresas no Piauí e em São Paulo e se posiciona como um dos grandes players internacionais na exportação de mel orgânico.
Estruturação da cadeia e as primeiras exportações
Se a década de 1990 marca o início de uma sofisticação da cadeia melífera do Piauí, o início da década seguinte aponta para o impulso da produção e entrada no mercado internacional. O período foi marcado pela estruturação de políticas públicas e também pela coragem dos empreendedores envolvidos na atividade.
O Programa Fome Zero foi uma das estratégias lançadas pelo Governo Federal que permitiu o crescimento da apicultura no Piauí, segundo a gestora do Projeto Agronordeste da unidade do Sebrae em Picos, Mercês Dias. “Em Picos, já havia uma base social pronta para receber os estímulos e crescer. Um dos nossos grandes diferenciais sempre foi a organização da cadeia produtiva e com a integração dos agentes públicos e privados em uma única estratégia, conseguimos atingir grandes resultados”, descreve Mercês Dias.
Uma das consequências dessa política para a região de Picos foi a criação da Casa Apis, que é uma unidade industrial de beneficiamento de mel administrada por cinco cooperativas de produtores piauienses. Além da indústria, a central oferece tecnologia e apoio para os seus cooperados gerarem mais resultados por meio da atividade melífera.
Outros marcos do início da década de 2000 foram as primeiras exportações de mel realizadas pelo Piauí. As dificuldades, porém, foram grandes. José de Anchieta Moura lembra que a associação de produtores de Simplício Mendes levou dois anos para conseguir fazer a comercialização dos primeiros tambores de mel, o que seria a primeira exportação piauiense do produto. “Nós precisamos conseguir o selo de inspeção federal para conseguir exportar e apenas depois disso conseguimos vender os tambores para uma empresa de comércio justo da Itália”, relata o técnico.
Pouco tempo depois, Samuel Lima Araújo também conseguiu fazer a venda de tambores de mel para a Alemanha. O empreendedor conta das dificuldades de comercializar o produto no mercado interno e que o mercado externo foi visto como a única solução. “Fui motivo de riso quando disse que iria exportar mel. Mas hoje vê-se que a decisão foi a mais acertada”, lembra o dono do Grupo Sama.
Quem concorda que a exportação foi um grande acerto dos apicultores piauienses é a secretária de Agricultura Familiar do Piauí, Rejane Tavares. Ela defende que a entrada no mercado internacional foi um indutor do crescimento da cadeia produtiva. “Sabe-se que para atingir o mercado internacional, exige-se padronização na produção, qualidade e origem certificada. Com a garantia de mercado estabelecida, todas essas exigências foram aplicadas desde a base da cadeia produtiva até a saída logística adaptada”, argumenta a secretária.
De olho na importância da exportação, a SAF e o Governo do Estado têm adotado ações para qualificar as cooperativas de mel com selos internacionais. No ano passado, por meio de investimentos de qualificação da SAF, a Cooperativa de Desenvolvimento do Vale do Rio Piracuruca (Codevarp), localizada na zona rural de Piracuruca, recebeu o Selo de Inspeção Federal (SIF) que permite vender para grandes empresas farmacêuticas nacionais e internacionais.
O Grupo Sama, de Oeiras, lidera hoje as exportações no Piauí e no Brasil
A cadeia do mel atual
Baseada na história desses três municípios (Oeiras, Picos e Simplício Mendes) e suas regiões se estrutura a cadeia melífera piauiense atual. Oeiras é, disparadamente, o principal polo exportador de mel do Piauí. Cerca de 4.500 toneladas movimentaram quase R$ 89 milhões no município por conta da estrutura de agroindústria que foi montada na cidade.
Picos ocupa o segundo lugar, tendo exportado em 2022 cerca de 1.800 toneladas de mel, acumulando um valor de quase R$ 36 milhões em vendas. Em terceiro fica o entreposto de Simplício Mendes que vendeu cerca de 130 mil quilos de mel para o exterior, movimentando, aproximadamente, R$ 2,5 milhões.
Empresas estadunidenses são as principais compradoras da produção de mel piauiense. Em Simplício Mendes, toda a produção é adquirida por empresas dos Estados Unidos. Em Oeiras este mercado é responsável por mais de metade das compras com o Canadá e a Alemanha vindo na sequência, mas já bem abaixo. No caso de Picos, quase toda a produção é vendida ao mesmo mercado e Alemanha e Reino Unido seguem abaixo.
Os números poderiam ser ainda melhores, já que eles representam uma queda em relação a 2021. Essa redução tem relação a um dos desafios apontados pelo empresário Samuel Lima Araújo para a atividade. “Hoje, a gente tem a Alemanha, a Europa de uma maneira geral, vivendo um processo inflacionário. Nós temos a América do Norte, que é o maior comprador de mel do Brasil, vivendo um processo inflacionário. Então isso, por si só, cria-se uma cadeia que desgasta o nosso produto”, afirma o empreendedor. A consequência desse cenário, segundo Samuel, é que o apicultor que trabalhava com o ano todo planejado, hoje só pode se planejar para um trimestre.
Os números apontados são do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, mas dados do IBGE mostram a amplitude da produção melífera piauiense além da exportação. Mais de 100 municípios do Piauí produzem o composto e muitos deles estão nas regiões mais pobres do estado.
Entre as 50 cidades que mais produziram mel no ano de 2021, 38 estão nos territórios de desenvolvimento mais pobres do estado. Municípios como Pimenteiras e Lagoa do Sítio no Vale do Sambito e Conceição de Canindé, Simplício Mendes e São Francisco de Assis no Vale do Canindé, veem a apicultura como uma atividade importante para a geração de riqueza.
Essa produção de grande quantidade só é possível por conta da estrutura organizativa de toda a cadeia. Mercês Dias destaca que formar cooperativas não é uma tarefa fácil em nenhum local para nenhuma atividade, mas que a cadeia do mel consegue incluir por seu baixo custo e rápida geração de resultados desde o pequeno agricultor familiar até o grande empresário. “A organização da cadeia produtiva do mel já virou exemplo e atividades como a ovinocaprinocultura já estão se espelhando nesse modelo para crescer”, constata a gestora.
A secretária Rejane Tavares confirma o uso da organização produtiva do mel como espelho para outros segmentos. “A Secretaria da Agricultura Familiar pretende ser o grande aglutinador para replicar o modelo da cadeia de valor do mel para outras cadeias prioritárias do estado como caprinocultura, fruticultura, psicultura, cajucultura e extrativismo vegetal”, descreve Tavares.
Outro fator positivo da apicultura está no meio ambiente. A criação de abelhas contribui para a manutenção do ecossistema da caatinga porque o animal é um dos mais importantes para a polinização da fauna.
Desafios para o futuro
Apesar de a produção de mel nos últimos cinco anos ter tido um crescimento forte no Piauí, os atores que fazem parte da cadeia apontam dificuldades que devem ser superadas. Para os pequenos produtores, o desafio mais antigo que se perpetua é a falta de capital de giro. José de Anchieta Moura destaca que esse problema acaba reduzindo as receitas das cooperativas, que não podem cobrar taxas que seriam mais adequadas para a sua manutenção.
Além disso, facilitam a ação de atravessadores que são muito prejudiciais para a agricultura familiar. Essa realidade prejudica, inclusive, a constatação de dados mais reais sobre a produção e exportação de mel piauiense. Especialistas acreditam que a apicultura gera muito mais recursos do que as estatísticas oficiais apontam, mas que parte do que é produzido e vendido para o exterior vai para os dados de outros estados.
Outro desafio para os produtores piauienses, segundo Mercês Dias, é a alta concorrência internacional do produto. Países tradicionais no setor como Argentina e China estão muito acima do Brasil e há outras nações que passam a figurar entre os principais exportadores. Além disso, alguns países importadores estão começando a produzir o próprio mel internamente.
Algum nível de desburocratização também é necessário, segundo Samuel Lima Araújo. “Hoje, se eu for ao banco tirar um financiamento para apicultura, eu preciso de uma licença ambiental, ou de uma dispensa de licença. Veja que aberração! Como é que eu sou protetor da natureza? O apicultor é inimigo do desmatador. Como é que eu sou amante da natureza e eu preciso de uma dispensa de licença?, indaga o empresário.
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